Por Eduardo Antônio Lucho Ferrão e José Rollemberg Leite Neto
Houve um tempo em que o direito ao Habeas Corpus foi negado a alguns brasileiros. Dizia-se que o acesso a tal ferramenta colocaria em risco a segurança nacional. Que elementos nocivos à sadia convivência no seio da comunidade não o mereceriam. Declarava-se que “os instrumentos jurídicos que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la”.
Nessa época, na porta das delegacias podia-se ler: “contra a pátria não há direitos”. No saguão delas, nas paredes mal caiadas, havia o retrato de um general, com a faixa presidencial auriverde cruzando-lhe o peito. E, mais para dentro, nos cárceres, podia haver e acontecer qualquer coisa. Quem lá estava não tinha direitos. Quem lá estava sequer poderia postular sair. Quem lá estava talvez sequer constasse como ali estando...
Dos consideranda do Ato Institucional 5 aos dias de hoje, a diferença não é tão grande quanto parece, quando o assunto é Habeas Corpus. Infelizmente. Ele está se tornando um adorno constitucional. Uma garantia simbólica. Um arremedo do que já foi.
Uma jurisprudência cada vez mais ensimesmada tem criado óbices pouco explicáveis ao manejo desse instrumento, colocando a liberdade das pessoas em um patamar de inferioridade em relação às estatísticas de produtividade judiciária, pondo o direito de petição — do qual o Habeas é o momento magno — ajoelhado perante conveniências de trabalho dos gabinetes judiciais.
Com efeito, proibiram, há poucos anos, o uso do instrumento para combater liminares negadas em outros Habeas Corpus. Foi editada a Súmula 691 pelo Supremo Tribunal Federal. Com isso, transformaram o acesso à corte máxima em algo inviável para inibir certos tipos de constrangimento.
Se um juiz decretar uma prisão temporária de cinco dias, o manejo do Habeas para o tribunal a que vinculado poderá ter sua liminar negada por razões que discrepam do entendimento do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. Mas a negativa dessa liminar não contará com meios jurídicos aptos a debelá-la antes de vencido o prazo prisional, já que a Súmula 691 do STF veda o manejo do remédio heroico nesses casos.
É mais ou menos o seguinte: o juiz prende de maneira equivocada (errare humanum est), o tribunal nega a liminar de maneira errônea (idem) e o cidadão encarcerado deve se conformar com o aprisionamento ilegal porque os tribunais superiores estão com suas portas fechadas para essa análise.
Diz-se, vez por outra, que quem não se resigna com a liminar negada deve buscar revê-la pela via do Agravo Regimental. Norma alguma diz que o Habeas Corpus, com seus séculos de história, com sua matriz constitucional, é servo de um recurso previsto em regimentos internos. Com isso, restam presos os que poderiam ser soltos, imolando liberdades no altar dos formalismos.
Pode ser dito: mas, em situações teratológicas, é possível superar o óbice da súmula. Pergunta-se: quando uma prisão ilegal não será uma teratologia?
Mesmo em casos de decretos prisionais preventivos, como Habeas Corpus demoram meses — sim, meses — para ser julgados, não é improvável que o encarcerado, sem a possibilidade de questionamento eficaz da negativa de liminar, passe todo esse tempo na prisão. Tempo que a análise da impetração poderia ter evitado, não fosse o obstáculo sumular.
De onde, na Constituição, se extrai tal vedação? De lugar algum. Onde, na lei, ela pode ser enxergada? Em local nenhum. Mas, a fim de evitar o “excesso de demandas” ou “o barateamento do Habeas”, nega-se ao cidadão o direito a uma liberdade que uma corte superior poderia afirmar.
Não é tudo. Afirma-se, de uns tempos para cá, que o Habeas Corpus não pode substituir o recurso ordinário. Pergunta-se: o recurso ordinário tem a celeridade do Habeas? Não. Como, então, resguardar a liberdade individual contra abusos que perdurarão enquanto houver a tramitação do recurso? Indague-se ao bispo, já que ao magistrado é defeso.
Isso para não falar em proibições outras, mais antigas, mas nem por isso admissíveis, como a que veda a análise de provas em Habeas Corpus (se o erro de análise probatória for detectável, por que não corrigi-lo?) ou a que exige prova pré-constituída para a sua tramitação (para que servem as informações?), entre outras restrições.
Alguém poderá objetar que são criminosos aqueles por quem são postulados os pedidos de Habeas Corpus. Estupradores, assassinos, peculatários... Ainda que se ultrapasse o dogma da presunção de não-culpabilidade, até os celerados têm direito a ver suas petições apreciadas na Justiça em um prazo razoável. E duração razoável, para quem está preso, é imediatamente.
Diz a Constituição: conceder-se-á Habeas Corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Sempre. Mas, contra a Súmula não há direitos.
Fonte: www.conjur.com.br